fala Caetano

Sob o jugo de sua calma

 Salvador é hoje uma das cidades mais violentas do Brasil. A greve da PM amplificou ainda mais a sensação de desassossego e insegurança dos baianos e a imagem desfigurada que hoje os brasileiros fazem da Boa Terra. Cresci sabendo que o Brasil nasceu na Bahia, o samba nasceu na Bahia, Cristo nasceu na Bahia. Mitos que não têm sido apenas desmentidos mas cruelmente pisoteados. Uma coisa, porém, ninguém pode negar: Dorival Caymmi nasceu na Bahia. E isso é como redimir as três afirmações anteriores, que vão, num crescendo, do simples orgulho histórico ao total absurdo. João Valentão é brigão, pra dar bofetão não presta atenção e não pensa na vida. A todos João intimida. Os chefetes matadores, seguidores tristonhos e provincianos da onda de heróis bandidos dos morros cariocas do passado (e que insistem em querer dar mostras de que ainda têm e terão eternamente o mesmo poder de sempre), são personagens soteropolitanos de agora. Mas João tem seu momento na vida. É quando sinto que se prova que, se os chefetes cariocas estão em descompasso com o andar da sociedade, os seus emuladores baianos são como o eco retardado de um gemido sinistro. Não há sonho mais lindo do que sua terra, diz o canto que brilha em perene redenção do insalvável.
Caymmi nasceu. Algo houve, cem anos antes da morte de DG, que nos mantém capazes de esperar, crer, amar. A canção brasileira é uma entidade em que as pessoas que por acaso se encontraram nesta parte do extremo Ocidente em que se fala português reconhecem-se, quase se justificam. Dorival Caymmi é um centro dessa entidade. O centro. Um polo. Um ponto fora da circunferência. Ele e só ele pode ser tudo isso.
As peças que ficaram conhecidas como “canções praieiras”, cantadas pelo autor acompanhado de seu violão, são momentos altos na história da música: as ouvimos e sabemos logo que se trata de grande arte, de algo que enaltece a nossa humanidade. As gravações têm apenas o defeito de terem sido mixadas com menos volume no violão em relação à voz do que seria o ideal. Mesmo assim, não há quase nada à altura em nossa música, em nossa literatura, em nossas artes plásticas ou cênicas. Caymmi teve uma casa de veraneio em Rio das Ostras. Stella, sua mulher de sempre (minha mãe dizia que ela era sua cantora favorita dentre todas as brasileiras que se apresentavam nos programas de rádio — e que Caymmi, casando-se com ela, tinha nos roubado esse tesouro; mas o fato é que Stella encontrou a felicidade em Dorival e, numa única faixa do disco que este fez, décadas mais tarde, com Tom Jobim, ela provou que nos dava mais do que toda uma carreira de estrela poderia), recebeu a kombi da TV Globo em que eu cheguei com Alcione e a equipe que iria gravar um encontro entre Caymmi e nós. Quando todos cumprimentávamos a dona da casa (que ironizava toda a situação com aquele calor de sinceridade apaixonante), Caymmi chegou, falou rapidamente com todos e me destacou do grupo para, segundo ele, me mostrar uma coisa muito importante que ele tinha feito. Eu o segui casa adentro, uma dessas casas brasileiras de beira de praia do final do século XX, sem nenhum encanto aparente. Chegamos ao cômodo onde estava aquilo para o que ele queria chamar minha atenção. Era uma sala neutra, com uma poltrona comum. Um ventilador estava no chão, ligado. Caymmi, pondo a mão no meu ombro, disse: “Olha o que eu fiz: botei o ventilador de frente para a poltrona. Eu me sento aqui e fico só pensando em coisas boas”. Era um koan baiano, uma lição do Buda-Nagô, como sintetizou Gil. Zen-yoruba.
Quando minha querida Suzana de Moraes, filha de Vinicius, se casou com Robert Feinberg, Dedé, mãe de Moreno, então minha mulher, foi madrinha, Carlos Drummond de Andrade, padrinho. Isso me deu a oportunidade de conhecer Drummond, que falou de música e política, chegando ao alvo: “O melhor é Caymmi”. Feliz, contei a história da poltrona e sobre o “só pensando em coisas boas”. Drummond, grave e sorrindo: “E nós, hein, Caetano, que só pensamos em coisas ruins...”.
Caymmi sabia de tudo. João Gilberto me disse que eu olhasse sempre para ele, que ele era o gênio da raça, uma lição permanente. Não por acaso ele é folclore e sofisticação urbana, “O mar” e “Você não sabe amar”, primitivo e impressionista, ligado a todos e sozinho. Todas as coisas ruins que se apresentam de modo tão estridente ao nosso redor agora mesmo estão sob o jugo de sua calma, de sua teimosa paciência, de sua doçura, de sua luminosa inspiração. Stella não nos deu apenas a “Canção da noiva”, Nana, Dori e Danilo: ela nos deu a vida de Caymmi. As coisas ruins vão ter de se virar para enfrentá-lo.
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